O parto do Noah

Cada parto é único, cada parto tem o seu ritmo, a sua vontade e é impossível de prever. Por mais técnicas que aprendamos, por mais calendários que sigamos, por mais teorias que estudemos, cada parto chega no seu momento, com as suas especificidades, os seus tons, as suas lições. Estar informada sobre o parto, rodear-se de quem nos empodera e apoia, tudo isso é valioso, tudo isso é fundamental, mas grande parte do parto é mais do que toda essa preparação, grande parte do parto é rendição. Podemos aprender a respirar, a mexer, a dançar, podemos conseguir diminuir a dor, pôr um penso nos medos, mas um parto é mais um mergulho do que uma coreografia treinada e prevista.

Vivi a minha primeira gravidez em 2011. Tive enjoos durante alguns dias. Contracções dolorosas só tive no dia do parto, começaram de madrugada, algum tempo depois de ter iniciado uma grande crise de asma. Até hoje não sei se foi a asma que despoletou o parto, se foi a medicação de urgência, se foi coincidência, não faço ideia. Ao início da tarde fui ao Hospital de Santa Luzia, em Viana do Castelo, porque a asma não melhorava e, para grande choque meu, o obstetra informou-me que me encontrava em trabalho de parto (toda a gravidez andamos a planear o parto em casa, já tínhamos a piscina e uma parteira). O Aléxis nasceu na madrugada seguinte, às 01:25, com 3505kg, num parto carregado de violência obstétrica.

Vivi a segunda gravidez em 2017. Tive enjoos durante meses, vomitava quase todos os dias. Tive vários problemas seguidos, como ficar com os 2 ouvidos tapados, ter de arrancar um dente do siso e ser internada com uma crise renal. Nessa gravidez tive prodromos durante semanas, fui 3 vezes ao hospital a achar que ia nascer, com contracções fortes e super regulares. Às 40+5 semanas senti as águas romperem quando estava na cama a dormir, à 01h45. Fomos para o Centro Hospitalar da Póvoa, onde o Leonardo nasceu às 05h30, com 4.035kg, num parto respeitado.

Vivi a terceira gravidez em 2019. Além da azia dos últimos meses e alguma anemia no segundo trimestre, não tive queixas. Foi, sem dúvida, a gravidez mais pacífica de todas, mas com dois filhos em casa foi, também, a mais cansativa. Não tive prodromos, tive algumas contracções aqui e acolá, mas nada regular ou com grande dor. Com 41 semanas não tinha qualquer indício de que o parto estava para breve, no entanto sabia que iria esperar que o parto acontecesse no dia dele, naturalmente e, por isso, às 41 semanas assinei recusa de indução. Durante a madrugada das 41+1semanas senti algumas contracções, mas nada que não tivesse sentido antes, esporádico, irregular, sem grande dor. Consegui dormir tranquilamente toda a noite. Durante a manhã tudo se manteve irregular. Por volta das 15h30, comecei a ter contracções difíceis de tolerar. Sentei-me na bola de pilates enquanto falava com o meu namorado e, por volta das 16h10 decidi que era melhor irmos para o hospital. Pedi ao meu companheiro que ligasse à nossa doula. A viagem de carro foi muito difícil, mas como íamos com o nosso filho de 20 meses atrás, fiz os possíveis para não o assustar e usando técnicas respiratórias (hypnobirthing), fui atravessando cada contracção da melhor forma que podia, sem gritar. Quando estacionamos o carro já eu estava desesperada, queria sair do carro e ir para o meu canto. Enquanto aguardava por ajuda, tentei ligar à doula mas não consegui falar, já era tudo demasiado forte.

Entrei no hospital às 17h15, levaram-me para cima, quando entrei no bloco de partos, enfermeiras e obstetras rodearam-me. A obstetra pediu que fosse para a sala dela para me examinar, mas eu disse que não queria, que o parto estava já avançado e queria ir para o chão apenas. Aí ouvi uma das enfermeiras dizer “se queria parir assim, então deveria ter ficado em casa”. Ouvi outra enfermeira a dizer-lhe que se calasse, mas ela continuou a dizer que não tinha jeito nenhum, e que devia ir fazer ctg e deitar-me como as outras. Levaram-me para uma salinha onde estava uma mãe a fazer ctg deitada e voltaram a pedir que subisse para uma marquesa. Voltei a dizer que não, que não queria deitar-me, que queria ir para o chão. Como não me davam espaço onde o fazer, simplesmente ajoelhei-me e fiquei agarrada aos pés da marquesa. Fiquei muito tempo ali, diria que pelo menos uns 20/30m. O meu parceiro tinha o bebé ao colo e elas diziam que ele não podia estar lá com ele, por isso ele ia entrando e saindo. Repetiram algumas vezes que eu fosse para uma marquesa para me analisarem e verem o bebé e quando eu recusava, alguém dizia “sabe que está a colocar a vida do seu bebé em jogo?”. Infelizmente até nos hospitais mais respeitadores é preciso ter sorte com as pessoas que se encontram.

De joelhos, vi o rolhão mucoso cair, rosado e grosso, no chão, estava tudo a acontecer e não estava a acontecer como eu gostaria, não estava dentro de água, não estava a tolerar as dores, não estava a conseguir controlar-me, estava em sofrimento, no chão, numa sala com outra mãe (tadinha, deve ter ficado assustada). Depois vieram chamar-me para um quarto. Fui e quando entrei, voltaram a dizer que fosse para a marquesa. Não fui. Voltei a repetir que não queria toques, não queria manobras ou propostas fora daquilo que estava no meu plano. Uma enfermeira que me conhecia do outro parto, disse que podia perfeitamente monitorizar o meu bebé ali no chão e assim o fez (não entendo porque fazem tanta pressão para que a mulher seja examinada deitada quando o podem fazer em qualquer posição). O meu parceiro e o meu bebé continuavam a entrar e a sair, até que lhes disseram que não podiam lá voltar. O meu companheiro acabou por não conseguir assistir ao parto mas, olhando para trás, fico feliz que tenha sido assim, pois este parto era para enfrentar sozinha. A nossa doula finalmente chegou e que alívio senti quando a ouvi. Não a vi! O engraçado é que durante todo o TP eu não vi a cara dela uma única vez, só a vi quando o meu filho já estava nos meus braços. . Mia Negrão, sei que estava fechada dentro da minha batalha, por trás dos meus cabelos, como uma fera indomável, mas tu foste a segurança que me permitiu enfrentar aquela tempestade  sozinha. Eu sabia que estavas ali e que ninguém atravessaria as muralhas que construí. Obrigada.

Este parto doeu, doeu muito. Todo o tempo que estive no hospital (2h) foi um inferno de dor, quase sem tempo para respirar. Era como se só tivesse um fôlego de 5 em 5 minutos, elevava-me para fora daquela tempestade, inspirava profundamente, e voltava a cair no centro do furacão. Eu sabia que não podia fugir daquilo, sabia que não o podia domar, não o podia encurtar, não podia calar nada! Por sentir isso tudo, quase tudo que disse naquelas duas horas foram “nãos”. Não aos toques, não ao acelerar, não ao subir para a marquesa, não às mudanças de posição, não não NÃO NÃO! Eu sabia que nada daquilo me ajudaria e sabia que saber dados físicos poderia desesperar-me mais. Não queria, queria apenas estar ali, eu, o meu filho, o chão debaixo dos meus joelhos e a doula a transformar os meus gemidos em palavras claras. Não queria discussões, não queria explicar-me, só queria estar perdida no centro do furacão.

Gritava eu a plenos pulmões quando entrou a obstetra, que começou a pressionar para me fazer um toque. Durante toda a gravidez recusei os toques, apenas permiti UM no dia anterior do parto, porque EU queria saber se as pequenas contracções que ia tendo, estavam a fazer algum efeito. Era a mesma obstetra, eu disse que não queria. Voltou a insistir e acrescentou que queria ajudar a acelerar as coisas, voltei a recusar. Ela disse-me “se acontecer alguma coisa ao seu bebé, a responsabilidade é sua”. Mas não havia nenhuma parte de mim aberta a fazer exames naquele momento ou aberta a “ajudas” que coloco entre aspas por saber que não me iriam ajudar. Toda eu era dor mas toda eu era também consciência de que estava tudo a desenrolar-se rapidamente. Naquele momento já eu sentia vontade de puxar, já era tudo demasiado intenso e todas as perguntas e propostas me desagradavam profundamente, cada frase feita para me amedrontar, me fechava mais dentro de mim. A doula disse-lhe que não adiantava insistir e, naquele momento, puxei com tanta força, durante tanto tempo, que as águas se romperam. E a obstetra saiu e não regressou. As dores eram enlouquecedoras, não havia parte de mim que não fosse pura dor, aquilo não terminava, mas eu sabia que era assim que tinha de ser, que nada do que propusessem me ia ajudar naquele momento. Não tinha quase tempo para respirar, só conseguia gritar e puxar. E que bom foi poder ouvir a Mia dizer “isso, grita, grita tudo! Deixa sair”.

E que maravilhoso quando senti o meu filho dentro do canal vaginal! Saber que estava ali, que estava quase a tocar-lhe, que estava tudo a acontecer: estamos a conseguir!! O anel de fogo, latejante e poderoso, que bom é sentir o bebé atravessá-lo. Com a cabecinha de fora, senti o meu corpo pedir que mudasse de posição, mas quando tentei avançar a parteira disse que era melhor colocar-me na posição em que estava antes para ela poder ajudar e eu não lacerar. Ouvir naquele momento a palavra “lacerar” não é entusiasmante, por isso recuei, puxei mais algumas vezes e ele saiu. No momento em que saiu, voei para aquela realidade paralela que tantas mães conhecem. Não sei que espaço é aquele, mas é noutra dimensão. Ouvimos o que se passa nesta, mas estamos fora daqui, numa mistura de alívio e êxtase, a dor já não existe. Ouvi as vozes ao longe “Bárbara, o seu filho está aqui”, dizia a parteira, mas eu não conseguia sair daquele sítio. “Bárbara, vira-te, podes pegar no teu filho”, disse a doula e então eu desci de novo à Terra, virei-me e peguei no meu novo e grandioso amor: Noah.

Conseguimos, filho! Conseguimos! Estás nos meus braços, a tua pele contra a minha. Não lacerei, não precisei de pontos, tudo intacto! Como o nosso corpo é incrível, mulheres! Ali estávamos os dois, a ferver, o cordão ainda nos ligava. “Meu filho, meu amor, meu filho, estás aqui”. Alguns minutos depois a parteira disse que o cordão já não pulsava, mostrou-nos, a doula concordou e eu cortei-o. Agora a placenta. No segundo parto tive uma hemorragia porque a placenta não descolava, mas desta vez iria ser diferente. Não estava a sangrar, a parteira disse que a placenta já estava descolada e que queria puxá-la para que não corresse mais riscos. Eu não queria que me puxassem, não queria massagens e mais dores. Passou-me o cordão para a mão e lentamente, puxei-a eu. Não a senti presa, foi descendo devagarinho e saiu. Ali estava ela, criada para nutrir o meu filho durante 41 semanas. Tiramos fotos e guardamo-la para eu a poder levar para casa. Liguei ao meu namorado, ele nem queria acreditar “Já nasceu??? Estás a falar a sério?” “Sim, anda vê-lo, amor”. Toda eu era felicidade com o meu filho colado a mim.

O Noah nasceu no dia 5 de Setembro, com 4.595kg, às 19:13, ali, no dia e momento perfeitos, como um relâmpago carregadinho de amor. 24horas depois estávamos em casa, no nosso ninho, quentinhos e felizes.

Conseguimos, família, hoje somos um 5 perfeito ❤

 

Nota: eu sei que para todos os que apenas conhecem o parto convencional, em que a mulher está deitada numa marquesa, de pernas abertas, enquanto lhe gritam que puxe, este pode parecer um relato estranho. Porque rejeitei eu deitar-me ou que os médicos me examinassem? Nós, mulheres, sabemos parir e podemos parir num hospital se isso nos deixa mais confortáveis (ter uma equipa que ajude em caso de REAL necessidade), mas o parto em si não é um acto médico, não é uma cirurgia, é algo natural que sabemos fazer se nos deixam em paz, como qualquer animal no seu habitat natural. Estar deitada numa marquesa e puxar é a forma mais difícil de expulsar um bebé, a forma mais dolorosa e a que mais provoca lacerações. A posição idela é vertical, a força da gravidade a ajudar e não o oposto. Em vez de estranharem ou julgarem, questionem. Questionem tudo, sempre!

Noah

 

3 comments

  1. Olá, Bárbara!

    Já pesquisei anteriormente sobre partos e qual a forma mais natural de parir, sendo que cheguei a descobrir um estudo que mostrava que desde o tempo dos egípcios existem registos da utilização de uma posição vertical durante os partos (https://ajph.aphapublications.org/doi/pdf/10.2105/AJPH.77.5.636). O que a Bárbara diz faz imenso sentido quando olhamos para o reino animal, e penso que é normal questionar até que ponto as “ajudas” na verdade impedem o trabalho natural do corpo por neutralizarem certos sinais naturais, por acelerarem o processo e por colocarem a mãe numa posição tão desfavorável.

    Para além destas pequenas pesquisas, não sei onde posso ter acesso a mais informação sobre este assunto.

    A Bárbara tem alguma sugestão? Gostava de aprender mais, para que quando fôr a minha altura (lá mais no futuro), saber melhor sobre o que fazer e a quem posso vir a recorrer.

    Obrigada 🙂

    Gostar

Grata pelo feedback